Agamben
"contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro. todos os tempos são, para quem deles experimenta contemporaneidade, obscuros. contemporâneo é, justamente, aquele que sabe ver essa obscuridade, que é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente. mas o que significa “ver trevas”, “perceber o escuro”? uma primeira resposta nos é sugerida pela neurofisiologia da visão. o que acontece quando nos encontramos num ambiente privado de luz, ou quando fechamos os olhos? o que é o escuro que então vemos? os neurofisiologistas nos dizem que a ausência de luz desinibe uma série de células periféricas da retina, ditas precisamente off-cells, que entram em atividade e produzem aquela espécie particular de visão que chamamos escuro. o escuro não é, portanto, um conceito privativo, a simples ausência da luz, algo como uma não-visão, mas o resultado da atividade das off-cells, um produto da nossa retina. isso significa, se voltamos agora à nossa tese sobre o escuro da contemporaneidade, que perceber esse escuro não é uma forma de inércia ou de passividade, mas implica uma atividade e uma habilidade particular que, no nosso caso, equivalem neutralizar as luzes que provém da época para descobrir suas trevas, o seu escuro especial, que não é, no entanto, separável daquelas luzes. pode-se dizer contemporâneo apenas que não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade. com isso, todavia, ainda não respondemos a nossa pergunta. por que conseguir perceber as trevas que provém da época deveria nos interessar? não é talvez o escuro uma experiência anônima e, por definição, impenetrável, algo que não está direcionado para nós e não pode, por isso, nos dizer respeito? ao contrário, o contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo. no firmamento que olhamos de noite, as estrelas resplandecem circundadas por uma densa treva. uma vez que no universo há um numero infinito de galáxias e de corpos luminosos, o escuro que vemos no céu é algo que, segundo os cientistas, necessita de uma explicação. é precisamente da explicação que a astrofísica contemporânea dá para esse escuro que gostaria agora de lhes falar. no universo em expansão, as galáxias mais remotas se distanciam de nós a uma velocidade tão grande que sua luz não consegue nos alcançar. Aquilo que percebemos como o escuro do céu é essa luz que viaja velocíssima até nós e, no entanto, não pode nos alcançar, porque as galáxias das quais provém se distanciam a uma velocidade superior àquela luz. perceber no escuro do presente essa luz que procura nos alcançar e não pode fazê-lo, isso significa ser contemporâneo. por isso os contemporâneos são raros. e por isso ser contemporâneo é, antes de tudo, uma questão de coragem: porque significa ser capaz não apenas de manter fixo o olhar no escuro da época, mas também de perceber nesse escuro uma luz que, dirigida para nós, distancia-se infinitamente de nós. ou ainda: ser pontual num compromisso ao qual se pode apenas faltar."