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De todo corpo alimento se manipula

De todo corpo alimento se manipula Nas horas vorazes, nos sustos sem medo, comida é sangue, sal, letra, organismo, pulso-insistente, moeda de troca. Toda saliva espera o prato ausente. Memórias e sonhos -e memórias fazem o tempo despertar o afeto do grão de centeio, atemóia e gengibre. Uma vez na Algarvia, um homem africanamente português me ensinou a mastigar vieiras. Mastigar vieiras como se não fosse preciso senti-las. Mastigá-las apenas para revivê-las, no iodo e no sexo. Em toda língua alimento se extingue. Muito convicta de que moluscos são as pequenas mortes do mar, mastigo mulheres sudanesas, canadenses e angolanas e seus respectivos pactos com a vergonha. Sorvo o que brota, voa, nada, rasteja, caminha, dá em rama, se abre em concha, em tripas, em nervos, em pó, de modo que revivo tudo o que come a boca do homem, a glote da Terra. Coberta de apetites, pequenas mortes, alguns pudores, mastigo a mim mesma. Serenamente convicta de que liberdades são fomes antigas.

Serena Assumpção

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